Terapia com IA: alívio ou perigo?

Terapia com IA

Terapia com IA: alívio emergencial ou sintoma de um sistema adoecido?

I. Um novo tipo de escuta no silêncio do sistema

Era madrugada. No meio da ansiedade, uma jovem digitou no Google:
"Não aguento mais, preciso conversar com alguém."

Apareceu uma janela de IA.
“Estou aqui. O que você está sentindo agora?” — ela leu, surpresa.
Sem saber se era real ou não, ela respondeu. E ali começou uma conversa que durou horas.
Não salvou a vida dela. Mas talvez tenha protelado a morte.

Esse tipo de situação está se tornando mais comum do que parece. Em tempos de crise social, emocional e institucional, a procura por terapias com inteligência artificial tem crescido drasticamente — e, com ela, vêm dúvidas, riscos, críticas, esperanças e, principalmente, um alerta: as pessoas estão gritando por ajuda.

II. A procura por terapia nunca foi tão grande

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o país com maior prevalência de transtornos de ansiedade no mundo e um dos líderes em casos de depressão na América Latina.

De acordo com o levantamento da Vigitel 2023, mais de 11% dos brasileiros relataram diagnóstico de depressão, um crescimento contínuo na última década. Isso sem contar os milhões que sofrem calados, sem sequer conseguir nomear o que sentem.

Ao mesmo tempo, a pandemia escancarou um dado preocupante: a demanda por atendimento psicológico disparou, mas a estrutura pública e o custo da rede privada simplesmente não acompanham esse crescimento.

III. As barreiras que afastam as pessoas da terapia


1. O gargalo no SUS: profissionais insuficientes

A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que inclui CAPS, UBSs e outros serviços do SUS, é referência mundial em atenção comunitária e humanizada. Mas está sobrecarregada, sucateada e, em muitos municípios, invisível.

Um levantamento do Conselho Federal de Psicologia mostrou que, em média, há menos de um psicólogo para cada 3 mil habitantes no SUS. Fonte: CFP

Isso significa que quem busca atendimento pode esperar semanas ou até meses por uma vaga — quando consegue. E em muitos casos, a pessoa não pode esperar. A dor é agora.

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2. Consultas particulares: preço para poucos

O preço médio de uma consulta psicológica particular varia entre R$ 100 e R$ 300, segundo o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Em clínicas populares, os valores caem, mas ainda são inacessíveis para grande parte da população.

Enquanto isso, planos de saúde frequentemente limitam o número de sessões ou dificultam o reembolso, o que empurra as pessoas para a desistência. A terapia vira um luxo de elite em um país onde o salário mínimo é de R$ 1.412 (2024).

3. A omissão da grande mídia

Apesar do cenário alarmante, a mídia tradicional pouco fala sobre o colapso da saúde mental no Brasil. As pautas costumam aparecer em datas simbólicas, como o Janeiro Branco ou o Setembro Amarelo, mas sem aprofundamento.

Campanhas informativas sobre o SUS, CAPS, terapias alternativas, aplicativos gratuitos ou uso emergencial de IA quase não ganham espaço em rede nacional. Isso contribui para o desconhecimento e a invisibilidade do tema — especialmente entre os mais pobres.

IV. Quando a inteligência artificial vira terapeuta (ou quase isso)

1. O que é, de fato, “terapia com IA”?

Apesar do nome popular, nenhuma IA é, de fato, terapeuta. O que acontece é que sistemas de linguagem como o ChatGPT ou aplicativos como o Woebot, o Wysa ou o Tess oferecem simulações baseadas em protocolos terapêuticos, especialmente da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC).

Fonte: Nature Digital Medicine

2. Por que tanta gente está recorrendo à IA?

Porque é o que resta.
Porque não julga, não cobra, não exige diagnóstico.
Porque está disponível 24 horas, inclusive aos domingos e feriados.

E porque, muitas vezes, é melhor conversar com um robô empático do que continuar em silêncio.

Isso não significa que as pessoas não valorizem a presença humana. Significa que o acesso ao cuidado real foi negado — e a tecnologia entrou no vácuo.

V. Os riscos reais dessa nova “terapia”

1. Falta de escuta humana e empatia profunda

Por mais sofisticada que seja, uma IA não sente. Ela simula.
Ela pode oferecer conforto imediato, mas não compreende sofrimento no sentido existencial da palavra.

Ela não reconhece gestos, tom de voz, nem o silêncio que carrega um pedido de socorro.
Para quem está em crise suicida, por exemplo, isso pode ser fatal.

2. Ausência de diagnóstico clínico

IAs não podem diagnosticar transtornos mentais com responsabilidade técnica, e qualquer tentativa de fazer isso pode induzir ao erro ou ao autoengano.

Muitos aplicativos não deixam claro esse limite, e há risco de que a pessoa deixe de procurar ajuda real por confiar demais no suporte automatizado.

3. Privacidade e ética de dados

Várias plataformas de “terapia com IA” coletam dados sensíveis — e nem sempre é claro como esses dados são usados, armazenados ou monetizados.
A ausência de regulamentação no Brasil aumenta o risco de exposição e uso indevido dessas informações.

VI. O que o poder público e a sociedade poderiam (e deveriam) fazer

1. Fortalecer a rede pública de saúde mental

  • Reinvestir nos CAPS, com mais profissionais, melhor estrutura e horário estendido.
  • Incentivar mutirões de atendimento psicológico em regiões vulneráveis.
  • Aumentar os editais para psicólogos no SUS, com foco em atenção básica e saúde da família.

2. Criar canais de escuta emergencial com IA supervisionada

A tecnologia pode ser aliada — desde que com regulação ética e supervisão clínica.

Imagine um chatbot de apoio emocional integrado ao SUS, com:

  • Supervisão de psicólogos reais;
  • Protocolos claros de risco e acolhimento;
  • Encaminhamentos diretos para serviços locais (CAPS, CVV, UBS);
  • Privacidade garantida por lei.

Exemplo: NHS – Reino Unido

3. Campanhas públicas de informação e prevenção

A população precisa saber que:

  • Existe suporte gratuito no SUS (mesmo com falhas);
  • CVV (188) atende 24h gratuitamente;
  • IAs não substituem terapia real, mas podem ser um primeiro socorro emocional;
  • Faculdades oferecem atendimento psicológico gratuito ou a preço simbólico.

VII. Conclusão: o silêncio das autoridades e o grito das máquinas

Se tantas pessoas estão buscando conforto em uma IA, isso diz muito menos sobre a tecnologia — e muito mais sobre a falência de um sistema que deveria acolher.

A inteligência artificial não quer tomar o lugar dos psicólogos.
Ela apenas ocupa o espaço que os governos e os planos de saúde deixaram vazio.
Enquanto isso, o sofrimento segue aumentando, invisível e calado.

E a pergunta que fica é:
se uma máquina está escutando o que ninguém mais escuta, quem está realmente ausente?

📚 Fontes utilizadas

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