O Voo Bipolar de Santos Dumont

Santos Dumont

O Gênio Atormentado

Ele é o Pai da Aviação, o gênio brasileiro que encantou Paris e conquistou os céus. Alberto Santos Dumont é uma figura monumental, um ícone perpetuado em bronze, nomes de avenidas e nos livros de história. Sua imagem pública é a do inventor intrépido, do dândi elegante da Belle Époque, do visionário que domou o ar com balões, dirigíveis e, finalmente, com o mais pesado que o ar, o revolucionário 14-Bis.

Contudo, sob as camadas de aclamação e sucesso, pulsa uma história muito mais complexa, turbulenta e, em última análise, trágica. A trajetória de Santos Dumont não foi uma ascensão constante, mas sim um voo intermitente, marcado por picos de energia criativa quase sobre-humana e vales de desespero abissal.

Por décadas, suas lutas internas foram atribuídas genericamente à sua "sensibilidade de gênio" ou, mais tarde, ao diagnóstico neurológico de esclerose múltipla, que de fato o acometeu em seus anos finais. Hoje, porém, uma análise aprofundada de sua biografia, à luz do conhecimento psiquiátrico moderno, nos convida a uma nova e corajosa interpretação: a de que Santos Dumont pode ter sido um dos mais ilustres portadores de Transtorno Bipolar do Humor da nossa história.

Esta matéria é uma investigação jornalística sobre essa hipótese. Não se trata de diminuir o herói, mas de humanizá-lo. É um convite para olhar além do monumento e encontrar o homem — um homem cuja mente brilhante pode ter sido alimentada pela mesma condição que, no fim, contribuiu para sua queda.

Anatomia de um Gênio Bipolar: Evidências nos Céus e na Terra

A Chama da Hipomania: Energia Infindável e Criatividade Explosiva na Paris da Belle Époque

Santos Dumont mergulhou na vida parisiense com uma energia quase sobrenatural. Era incansável. Trabalhava noites seguidas, reinventando formas de voo enquanto desafiava os limites da física. Os relatos biográficos, como os reunidos por Paul Hoffman no livro Wings of Madness, revelam um homem que dormia pouco, falava rápido, produzia intensamente e parecia não ter limites.

Em sua fase de maior atividade, Dumont projetou e testou 14 dirigíveis em poucos anos. Vivia com pressa, como se o tempo fosse escasso demais para a avalanche de ideias que habitavam sua mente. Participava de jantares elegantes e, ao mesmo tempo, inventava formas de contornar a Torre Eiffel no céu.

Essa intensidade, esse otimismo inabalável, essa autoconfiança quase divina são marcas que hoje reconhecemos como características possíveis da hipomania. Santos Dumont não era apenas criativo — ele era impulsionado por uma força interna que queimava como fogo.

A Sombra da Depressão: O Peso do Mundo sobre os Ombros do Inventor

Mas todo fogo consome. E a mente que voa alto também pode despencar com violência. A Primeira Guerra Mundial foi um divisor de águas. O avião, símbolo de liberdade, virou arma de destruição. Santos Dumont assistiu ao uso militar de sua invenção com horror.

Retraiu-se. Afastou-se dos amigos. Abandonou a invenção. O homem que antes era o centro de todas as festas passou a se esconder em quartos de hotel. A culpa o corroía — uma culpa irracional, mas compreensível. Ele se sentia responsável pelo sangue derramado dos céus.

Queimou cartas, desenhos e cadernos. A paranoia o visitava. Tinha medo de ser confundido com espião. O brilho de sua mente foi encoberto por uma névoa escura que durou anos. Os sintomas batem com perfeição com episódios depressivos maiores: apatia, isolamento, ideação suicida, sentimento de culpa intensa e desproporcional.

O Diagnóstico Póstumo: Entre a Psiquiatria e a Neurologia

A Visão Psiquiátrica: O Estudo de Fernando Allub

O psiquiatra Fernando Allub é um dos que propõem a leitura de Santos Dumont como possível caso de Transtorno Bipolar tipo I. Aplicando os critérios do DSM-5, sua trajetória encaixa-se em um quadro clássico de episódios maníacos seguidos por episódios depressivos graves.

Não é um diagnóstico fechado, é claro. Mas é uma hipótese que joga nova luz sobre seu comportamento. O homem que inventava sem parar e o homem que não conseguia mais sair da cama talvez fossem o mesmo — apenas vivendo em extremos opostos da mesma condição.

A Visão Neurológica: A Esclerose Múltipla e a Perspectiva de Henrique Lins de Barros

Henrique Lins de Barros, biógrafo e físico, lembra que Dumont tinha um diagnóstico firme de esclerose múltipla. A doença ataca o sistema nervoso central e pode causar fadiga, alterações de humor e, sim, depressão. Em sua opinião, atribuir tudo à bipolaridade ignora os efeitos dessa doença devastadora.

A verdade talvez esteja no meio. A mente de Santos Dumont pode ter sido campo de batalha entre duas forças implacáveis: a bipolaridade e a esclerose múltipla. Uma acelerava, a outra freava. Uma inspirava o voo, a outra exigia aterrissagem.

O Último Voo: A Tragédia Silenciosa de 1932

Durante a Revolução Constitucionalista, ele ouviu os aviões sobrevoando São Paulo. Aqueles ruídos, que um dia simbolizaram o progresso, se tornaram tiros contra sua alma. Em 23 de julho de 1932, em um hotel no Guarujá, ele decidiu que não podia mais suportar.

O suicídio de Santos Dumont, embora ainda envolto em algum mistério, é tratado por estudiosos como o desfecho de um processo de sofrimento intenso e prolongado. Foi o fim de uma jornada em que a genialidade e a dor caminharam lado a lado.

Um Legado Humano: O Herói que Também Sofria

Ao olharmos para a figura de Santos Dumont com essa nova lente, não o diminuímos. Pelo contrário: o tornamos maior. O tornamos humano. E, talvez, mais próximo de nós. Um homem que mudou o mundo enquanto lutava contra o próprio mundo interno.

Para quem vive com Transtorno Bipolar, sua história é um espelho e um farol. Um lembrete de que a mente que sofre também pode criar beleza, que a dor não impede a contribuição, que voar é possível — mesmo quando tudo dentro de você quer te manter no chão.

Seu maior feito não foi fazer o 14-Bis levantar voo. Foi continuar tentando, mesmo com o peso da gravidade emocional que o puxava para baixo todos os dias. Foi lutar contra a queda — e inspirar milhões com cada tentativa.

Referências e leituras adicionais:

Se você ou alguém próximo enfrenta pensamentos suicidas, procure ajuda. No Brasil, o CVV (Centro de Valorização da Vida) atende gratuitamente pelo número 188 ou em www.cvv.org.br.

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