O Transtorno Bipolar e a Compulsão Por Compras

Compulsão e culpa


O Preço da Euforia: A Oniomania na Fase Hipomaníaca do Transtorno Bipolar

Quando comprar parece uma questão de sobrevivência

Não é fácil explicar para quem nunca passou. Não é sobre vaidade, luxo ou extravagância. Não se trata de querer chamar atenção ou de ser irresponsável. A oniomania, o impulso incontrolável de comprar, é uma sombra silenciosa que se arrasta junto da hipomania, uma das fases mais traiçoeiras do transtorno bipolar. É nessa fase que muitos de nós nos sentimos vivos de novo, despertos, cheios de energia e ideias. Mas é também nesse estado que os freios mentais se soltam, e uma simples ida à farmácia vira uma maratona de consumo desenfreado.

Durante a hipomania, a urgência emocional não parece exagerada. O que para os outros seria uma compra supérflua, para nós é quase uma necessidade vital. Não compramos porque queremos, compramos porque o corpo exige, como se a próxima respiração dependesse disso. E então, gastamos. Gastamos muito. Sem pensar, sem calcular, sem medir as consequências.

De acordo com estudo publicado na revista CNS Spectrums (Lejoyeux et al., 2000), aproximadamente 30% das pessoas com transtorno bipolar tipo I apresentam sintomas de compulsão por compras em algum momento de suas vidas. Isso não é coincidência: a hipomania é marcada por impulsividade, prazer imediato e uma falsa sensação de controle.

“A compulsão não é um capricho. É um sintoma. E como todo sintoma, precisa ser compreendido antes de ser julgado.”

Fonte: CNS Spectrums

Ciclo vicioso: da euforia à ruína emocional e financeira

O que começa com um impulso se transforma em dívidas, em culpa, em vergonha. A hipomania nos deixa excitados, otimistas, com uma sensação de invencibilidade. Acreditamos que tudo se resolverá, que o dinheiro voltará, que encontraremos uma solução genial. Compramos como quem aposta em uma vida nova, em um futuro que, no fundo, sabemos ser ilusório. E então vem o pós.

Quando o episódio termina, o que resta é um rastro de caixas, boletos, faturas e arrependimentos. Muitas vezes, sequer lembramos de todas as compras. Olhamos ao redor e nos perguntamos: “por quê eu comprei isso?”. A culpa é devastadora. Ela vem como um tsunami, levando junto a autoestima, a esperança e o controle. A depressão que se segue à hipomania parece mais pesada, mais cruel, mais destrutiva.

A literatura clínica mostra que a coocorrência entre transtornos de humor e transtornos de controle de impulsos é comum. Segundo o National Institute of Mental Health, cerca de 60% das pessoas com transtorno bipolar também apresentam algum transtorno comórbido, incluindo dependência química, compulsão alimentar e oniomania.

Fonte: NIMH - Bipolar Disorder Statistics

Essa superposição de sintomas torna o tratamento mais complexo, e a recuperação, mais longa. O ciclo se instala. E repete. E repete. Meses para pagar dívidas de uma semana. Um ano para recuperar o crédito. Uma vida para perdoar a si mesmo.

O inferno que os outros não enxergam

Eu PRECISO disso, não si pra quê, mas preciso!

É fácil apontar o dedo para quem se endivida. Difícil é entender o que se passa dentro da mente de quem vive com transtorno bipolar. A compulsão por compras, quando surge, não vem acompanhada de um aviso. Ela se infiltra na rotina, se camufla de necessidade, de urgência, de merecimento. Acreditamos, de forma honesta, que estamos fazendo algo importante. E quando alguém tenta nos parar, sentimos como se estivessem nos tirando o direito de viver.

A oniomania não é apenas um transtorno de controle de impulso. Para nós, bipolares, ela é um sintoma da euforia, uma extensão do pensamento acelerado, da impulsividade, da confiança excessiva que a hipomania traz. Muitas vezes, não conseguimos perceber o exagero até que seja tarde demais. E é nesse ponto que o ciclo se fecha: compra, culpa, depressão, e de novo, hipomania e compra.

Um estudo da Journal of Affective Disorders (2020) destaca que a compulsão por compras pode ser tão impactante quanto o abuso de substâncias, afetando diretamente o nível de funcionalidade social e financeira dos indivíduos.

“Viver com transtorno bipolar já é desafiador. Acrescente a isso a vergonha de abrir a fatura do cartão de crédito e você entenderá o que é o verdadeiro desespero.” — depoimento anônimo em grupo de apoio

Fonte: Journal of Affective Disorders

Rompendo o ciclo: caminhos de consciência e acolhimento

Sair desse ciclo não é simples. Envolve autoconhecimento, terapia, acompanhamento psiquiátrico e, principalmente, acolhimento. Precisamos falar sobre isso sem medo, sem culpa. Precisamos ser ouvidos, compreendidos, respeitados. Não somos fracos. Estamos em batalha constante com nossa própria mente.

Entre as abordagens terapêuticas mais eficazes estão a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) e a psicoeducação sobre o transtorno bipolar, permitindo que o paciente reconheça os primeiros sinais da hipomania e tome medidas preventivas.

O uso de aplicativos de monitoramento de humor, bloqueadores temporários de cartão e ferramentas de orçamento pessoal, como o Minhas Economias, podem auxiliar na gestão do comportamento financeiro.

A participação de familiares e amigos é igualmente crucial. Uma rede de apoio empática e bem informada pode significar a diferença entre recaída e recuperação. O simples gesto de um amigo que oferece companhia para ir ao mercado, ou que guarda o cartão de crédito durante um episódio, pode evitar uma queda emocional e financeira.

“A cura não é nunca mais comprar. É aprender a reconhecer o vazio antes de tentar preenchê-lo com objetos.”

Conclusão: Precisamos falar sobre isso. Com coragem.

A oniomania na hipomania é um assunto incômodo, muitas vezes tratado com superficialidade ou chacota. Mas não é piada. Não é frescura. É sofrimento real. É uma ferida invisível que sangra em silêncio e que, se ignorada, pode levar a prejuízos imensuráveis: emocionais, financeiros, sociais e, em casos extremos, à perda da vida.

Enquanto sociedade, precisamos abrir espaço para discussões francas sobre os efeitos colaterais da hipomania. Enquanto indivíduos que convivem com o transtorno bipolar, precisamos encontrar formas de expressar essa dor sem medo do julgamento. E, principalmente, precisamos de profissionais da saúde mental que saibam olhar para além do diagnóstico, reconhecendo as nuances do comportamento humano em sua complexidade.

A compra não é o problema. O problema é o que estamos tentando anestesiar com ela.


Referências:

Nota: este artigo é baseado em minhas experiências pessoais e no relato de outras pessoas que convivem com transtorno bipolar. Que ele sirva de apoio, reflexão e empatia para quem vive nesse ciclo silencioso.

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