Gravidez e Transtorno Bipolar

Gravidez e Transtorno Bipolar

🌕 Entre Dois Mundos: Gravidez e Transtorno Bipolar na Minha Família

“Não existe manual para o caos quando ele se instala dentro da nossa cabeça. Mas é possível escrever sobre ele depois, quando conseguimos sobreviver.”

Convivo com o Transtorno Bipolar há mais de 23 anos. Nesse caminho cheio de curvas, vivi experiências que só quem passa por isso compreende: a euforia quase delirante, a tristeza que parece sugar tudo por dentro, a culpa silenciosa que fere. Ainda assim, nada me preparou para a vivência mais desafiadora da minha vida: acompanhar a gravidez da minha ex-companheira — que, assim como eu, também é bipolar.

Nosso filho caçula, hoje com 27 anos, chegou ao mundo em meio a um redemoinho emocional, clínico e afetivo. Este texto é mais que um relato de pai ou de ex-marido: é o registro de como é possível nascer — e ajudar a nascer — com dignidade, mesmo no meio do caos químico da mente. É também um convite sincero à empatia e ao debate sério sobre saúde mental e maternidade.

🌪️ Quando Dois Bipolares Se Encontram (e Decidem Ter um Filho)

Nos conhecemos em um grupo de apoio. Eu estava num momento de estabilidade, ela vivia uma fase expansiva — com aquele brilho nos olhos típico da hipomania, que engana até especialistas. Nos apaixonamos intensamente, como se estivéssemos em um filme. Em poucos meses, já dividíamos o mesmo teto. E, em pouco mais de um ano, decidimos ter um filho.

Sim, decidimos juntos. E talvez aí esteja um dos aspectos mais dolorosos da bipolaridade: mesmo cientes dos riscos, da herança genética, dos obstáculos clínicos, o desejo de amar e construir uma família foi mais forte. Procuramos orientação médica, ajustamos os medicamentos, e interrompemos o uso do lítio de forma gradual, conforme o protocolo.

Mas aprendemos, de forma dura, que planejamento nenhum dá conta do imprevisível.

🧠 Gravidez e Transtorno Bipolar: O Que a Medicina Explica (E O Que Fica Nas Entrelinhas)

A ciência já deixou claro: mulheres bipolares têm alto risco de recaídas durante a gestação — especialmente quando interrompem a medicação. Um estudo conhecido (Viguera et al., 2000) indica que até 70% dessas gestantes, ao suspenderem os estabilizadores, enfrentam recaídas severas.

No nosso caso, não houve imprudência. Foi uma decisão médica, tomada em conjunto. O psiquiatra sugeriu a suspensão completa do tratamento, preocupado com os riscos de malformações e efeitos teratogênicos. Seguimos, então, por um caminho difícil: nove meses sem lítio, sem lamotrigina, sem qualquer amparo químico.

Minha ex-companheira já trazia um histórico de ciclos rápidos e episódios intensos. Bastaram algumas semanas para que surgissem os primeiros sinais de instabilidade. Começou com a insônia. Depois vieram crises de choro intercaladas com momentos de euforia. Logo mergulhou em um episódio misto — talvez o tipo mais cruel de todos.

Enquanto o corpo dela formava uma nova vida, sua mente enfrentava um colapso. E eu estava ali, acompanhando tudo, como se visse um filme em câmera lenta. Segurava sua mão, tentando puxá-la de volta, mas sentia que ela se afastava, afundando em um mar revolto onde eu já não alcançava.

⚖️ O Peso de Cuidar (Sendo Também Paciente)

Pouco se fala sobre a saúde mental do parceiro. E quando o parceiro também é bipolar, o equilíbrio se torna ainda mais delicado.

Lembro de uma noite em que ela gritava, descontrolada, dizendo que a televisão estava mandando mensagens sobre a gravidez. Eu, no canto da sala, chorava calado — porque sabia que aquela não era ela. Era a doença. A nossa doença.

Mas quem cuida de quem cuida? Eu não conseguia pedir socorro. Sentia vergonha. Tinha medo de julgamentos, de não ser levado a sério, de ser considerado incapaz.

Nunca esquecerei da madrugada em que ela tentou sair de casa, descalça, dizendo que precisava “proteger o bebê da guerra que estava por vir”. Chovia forte. Eu a abracei com força, quase a impedindo de sair, e pedi entre lágrimas que voltasse para cama.

Foi nesse dia que compreendi: por mais preparados que tentemos estar — com medicação, terapia, informação — quando o episódio se instala, ele nos atropela. E se estivermos sozinhos, ele pode nos derrubar completamente.

👶 O Parto, o Puerpério e o Medo da Herança Invisível

Nosso filho nasceu de 36 semanas (9 meses). O parto foi difícil, mas clinicamente estável. Ele veio ao mundo saudável. Ela, nem tanto.

A depressão pós-parto em mulheres bipolares é algo profundo. Segundo estimativas (Sit et al., 2006), até 60% dessas mulheres podem desenvolver algum grau de psicose pós-parto. Minha ex-companheira teve um episódio hipomaníaco severo na segunda semana: agressividade, irritação, tinha momentos em que não queria amamentar.

Ela quase precisou ser internada. Uma situação dolorosa. Mas vencemos.

Durante esse tempo, fui tudo: pai, cuidador, enfermeiro, cozinheiro. E, no silêncio, um homem assustado com a possibilidade de que o filho herdasse a mesma fragilidade química que nos marcou. E como uma fruta não cai muito longe da árvore, não deu outra, ou melhor, deu outra: ele não tem Transtorno Bipolar mas é portador de TDAH. Bem, isto eu contarei em outro Blog.

Risco genético: De acordo com o National Institute of Mental Health, filhos de um dos pais com Transtorno Bipolar têm de 10% a 20% de chance de desenvolver algum transtorno de humor. Quando ambos os pais são bipolares, esse número ultrapassa 50% (Gershon et al., 1987).

💔 Amar Alguém Bipolar (Sendo Bipolar): A Luta Invisível

A medicina, muitas vezes, falha em nos preparar. Mas a sociedade também. A linguagem, o olhar, o despreparo...

Você já viu alguma campanha pré-natal perguntar à gestante se ela sofre surtos maníacos? Já viu algum obstetra encaminhar para avaliação psiquiátrica antes de pedir o primeiro ultrassom?

Não, né? Mas deveria.

A saúde mental da mãe — e também do pai — é essencial para a segurança da gestação, do parto e dos primeiros anos da criança. Não é exagero: é uma questão de vida.

Estudos mostram que o suicídio materno é a principal causa de morte no primeiro ano após o parto em países como o Reino Unido (Oates, 2003). Isso não é apenas um dado — é um alerta.

Eu vi esse abismo de perto. Vi o olhar vazio de quem quer desaparecer, mesmo amando. Vi o conflito entre o instinto materno e o desejo de desistir. E vi meu filho ali, pequeno, esperando que déssemos conta. E conseguimos. Não sem marcas. Mas conseguimos.

🌱 O Que Aprendi: Uma Carta Para Quem Está No Olho do Furacão

Hoje, meu filho é um homem consciente, generoso, brilhante. Tem suas vulnerabilidades, como qualquer pessoa. Mas também carrega uma força rara. Ele sabe de onde veio. E entende que saúde mental não é apenas genética, mas também construção, cuidado, presença.

Se eu pudesse deixar um recado para quem vive situação semelhante, seria:

  • Planeje a gravidez com calma. Converse com psiquiatras, obstetras e terapeutas antes de qualquer decisão.
  • Jamais suspenda medicamentos por conta própria. Existem alternativas seguras como lamotrigina e oxcarbazepina, dependendo da fase da gestação.
  • Tenha rede de apoio. Amigos, familiares, vizinhos, colegas. Não tente enfrentar tudo sozinho.
  • Busque psiquiatria perinatal. Há profissionais preparados para esse contexto.
  • Cuide do pai também. Saúde mental do parceiro importa.
  • Internação não é fracasso. É cuidado. É proteção.
  • Fale. Compartilhe. Escreva. O silêncio só alimenta o estigma.

🔚 Conclusão: Parir Com Dignidade Também É Um Direito Psíquico

A gravidez e o Transtorno Bipolar podem coexistir — mas exigem vigilância, ciência, escuta e humanidade. Precisamos de um sistema de saúde que compreenda que algumas gestantes carregam mais que um bebê: carregam também uma mente em luta.

Que este relato ajude a abrir caminhos. Que outras pessoas saibam que não estão sozinhas. Que nossos filhos cresçam sabendo que foram desejados, amados — mesmo em meio às nossas dores.

E que, um dia, possamos dar à luz também a uma sociedade mais consciente e acolhedora.

📚 Referências

  • Viguera, A. C. et al. (2007). Risk of recurrence in women with bipolar disorder during pregnancy. American Journal of Psychiatry. Link
  • Sit, D. et al. (2006). A review of postpartum psychosis. Journal of Women's Health. Link
  • Leibenluft, E. (2000). Women with bipolar disorder. American Journal of Psychiatry. Link
  • Gold, P. W. (1999). The organization of the stress system. Molecular Psychiatry. Link
  • Oates, M. (2003). Suicide: the leading cause of maternal death. British Journal of Psychiatry. Link
  • National Institute of Mental Health. Bipolar Disorder
  • Gershon, E. S. et al. (1987). A family study of bipolar disorder. Archives of General Psychiatry. Link










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